O MORRO DO ALECRIM
Antonio Gonçalves Dias
Texto original Primeiros Cantos, 1846
Cachias, como és bella ! — no deserto,
Entre montanhas, derramada em valle
De flores perennaes,
És qual tênue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
A flor de manso lago.
Tu és a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cedros,
Forte — em gleba inculta
És qual gazella que o deserto educa
No ardor da sésta debruçada exangue
Á margem da corrente.
Não tens em molle seda occulto as graças,
Não cinges d'oiro a fronte que descancas
Na baze da montanha;
És bella como a virgem das florestas,
Que vê nas agoas desenhar-se as formas,
Firmada em tronco annoso.
Que monte além se eleva negrejante!
Na areia a baze enterra, e o dorso ingente
De rija pedra mosqueado amostra;
Estéril como elle é, dizer parece
Que a ira do Senhor ardendo em raios
A seve d'hartos troncos — de mil annos
Apagou — cousumio — n'um breve instante.
Mas não; a rubra cor que ahi se enxerga
É sangue que correo;
Cada pedra que hi jaz encerra a historia
D'um bravo que morreo.
E raios mil de guerra em morte involtos
Já lá do cimo agreste da montanha
Sibilando e gemendo à funda baze
Baixarão sussurrando.
É do povo o Sinai, que o nobre sangue
Independente e forte — em lide accesa
Na arena derramou;
E o filho inda lá vai cheio de orgulho,
Do pae beijando o sangue em largos traços
Que a pedra conservou.
II
E quando alva lua no céo vai brilhando
O disco formoso lusente mostrando,
Então quando as ondas mais vividas crescem
E mais contra a praia a bramir se enfurecem;
Descendo das nuvens ao monte orgulhoso
Infausta se amostra sinistra figura,
Mais negra que as trevas, que fora pasmoso
Ser esse phantasma de humana natura.
E quando é que se vê? — Quando nos bosques
A flor mais puro seo por fumo exhala,
Quando nas folhas o sussurro morre.
Quando das aves o gorgeio pára.
Quando immundo tatú na conxa involto
Vai de manso volver minada campa,
E a coruja sedenta a luz dos mortos
No fronteiro pano da muralha estampa.
Desde quando apparece? — Ninguém sabe,
E talvez appareça sem ler fim;
Só um em cujo peito horror não coube
Já do phantasma a voz ouvio assim.
Manito — Manito — cobriste o teo rosto
Com denso velamen de pennas gentis;
E jazem teos filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infelis!
Manito — Manito — descobre o teo rosto,
Bastante nos pesa da tua vingança;
Já lagrimas tristes chorarão teos filhos,
Teos filhos que chorão tão grande mudança.
O triste Anhangá de mui longe nos trouxe
Filhos de Tupan, essa raça damnada,
Emvão deu-lhe off'rendas o Piaga divino
Tocando a maráca na dança sagrada.
Emvão neste monte lhe veio offerlar
A pel'maculada de tigre raivoso,
E fructos, e fructas — e a pe`cambiante
Da Bóa vistosa de corpo pasmoso.
Manito — Manito — cobriste o teo rosto
Com denso velamen de pennas gentis;
E jazem teos filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.
Teos filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frexa,
No gume da maça, no arco tupi.
E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer — abaixar..
Já restão bem poucos dos teos qu'inda possão
Dos seos, que já dormem , os ossos levar.
Teos filhos valentes causavão terror
Teos filhos enchião as bordas do mar,
As ondas coalhavão de estreitas igáras
De frexas cubrindo os espaços do ar.
Já hoje não cação nas matas tão suas
A corça ligeira — o trombudo coali.
A morte pousava nas plumas da frexa,
No gume da maça — no arco tupi.
O Piaga nos disse que breve seria,
Manito , dos teos a cruel punição;
E os teos inda vagão por serras, por valles,
Buscando um asilo por invio sertão!
Manito — Manito — descobre o teo rosto,
Bastante nos pesa da lua vingança;
.lá lagrimas tristes chorarão teos filhos,
Teos filhos que chorão tão grande tardança.
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Segundo o escritor Emilson Sanches, o poema “O Morro do Alecrim”, apareceu apenas na edição de 1846 dos "Primeiros Cantos" gonçalvinos, na parte das "Poesias Americanas", sendo, nas edições seguintes, em parte suprimido, em parte desdobrado em dois outros poemas bastante lembrados: “Caxias” e “Deprecação”.
Referência: Gonçalves Dias, Antônio. Primeiros Cantos. Poesias. Rio de Janeiro: Casa de Eduardo e Henrique Laemmert, 1846, pp. 24-9. Consulta feita ao acervo digital da Biblioteca Universidade de São Paulo (https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4135/1/006342_COMPLETO.pdf
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