Um texto que nos faz refletir
A maior tragédia dessa história é que as crianças confiam nos adultos. Confiam como uma bússola ou um oráculo. Agarram-se a seus atos e palavras como uma boia no oceano ameaçador de uma vida a qual recém foram apresentadas. A menina confia no PAI quando ele diz que vai chupar seus seios, que ela ainda não tem, porque a ama. E confia nele também quando afirma que vai matar toda a família se contar para alguém sobre o ‘carinho’ que recebe.
Confia na MÃE quando é chamada por ela de vagabunda e confia também quando ela garante que a criança será um nada na vida. Confia no PADRASTO quando ele apaga cigarros no seu corpo porque foi um menino muito mau e confia também quando ele bate a sua cabeça contra a parede porque não suporta o choro de sua dor. As crianças confiam nos adultos quando eles as espancam, as violam, as torturam e as matam.
A maior tragédia dessa história não se encerra na família. Quando finalmente a criança consegue pronunciar o tamanho da infâmia a qual é submetida, ela continua confiando nos adultos. Confia na PROFESSORA quando conta que não consegue parar sentada na cadeira porque o tio botou o ‘pipi’ na sua bundinha e sangrou. Confia quando sussurra que não quebrou a perna caindo da árvore como a família contou ou que aquela mancha roxa na bochecha não foi resultado de um soco de um colega. E morre um pouco mais quando a professora diz que isso não passa de história de criança mal-educada.
Confia no CONSELHEIRO TUTELAR quando conta que vende o corpo na rua porque já foi violado em casa. E confia nele também quando afirma que senão levar dinheiro para o casebre onde mora vai apanhar a relho. E morre um pouco mais quando tudo o que o conselheiro pode lhe oferecer é uma vaga numa instituição onde sabe que será currado pelos mais velhos.
Confia no MÉDICO e na ENFERMEIRA a quem abre as chagas de seu corpo a custo sem medidas. E confia na ASSISTENTE SOCIAL e no PSICÓLOGO a quem escancara o coração até então encarcerado pelas chaves do silêncio. E morre um pouco mais quando o ‘sigilo ético’ é usado como explicação para zeloso profissional não levar o caso adiante.
Confia no JUIZ quando pede que limpe a cera do preconceito e a escute. E confia nele também quando implora que preste mais atenção em evidências invisíveis, mas que sagram, do que no laudo inconclusivo e estéril do Departamento Médico Legal. E morre em definitivo quando o senhor togado do seu destino sentencia que não há provas materiais para condenar seu algoz. Ou que, apesar de seus 12 anos, era bem resolvida e esperta para seduzir seu estuprador.
A maior tragédia dessa história é que as crianças confiam nos adultos. São jovens demais para adivinhar que nos tornamos cegos, surdos e mudos. São puras demais para saber que preferimos conjugar o verbo ignorar ao verbo agir. São inocentes demais para compreender que somos uma sociedade autofágica, que, ao matá-las, destruí-las ou violá-las, nada mais faz que se imolar. A maior tragédia dessa história é que as crianças só podem contar com os adultos.
Aos algozes da inocência sobra o argumento de que um dia, quase certamente, também eles foram vítimas nas mãos familiares de um carrasco. E a nós, que escutamos seus gritos na rua, no consultório, no conselho ou tribunal, qual é a desculpa que nos resta?
Ou passamos a merecer a confiança da criança que nos estende a mão ou a tragédia é tudo o que nos restará.
Autora: Eliane Brum
In: AMENCAR. Violência Doméstica
Brasília: UNICEF, 2000
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