"A palavra,
em verdade,
é funda em si mesma.
Raso, contudo,
é o nosso poder
de entendê-la."
(Déo Silva)
Dentro do poema estou.
Não sob formas tênues e
claras. Não como uma frustração impronunciável
que o tempo dissolve no ar, ou como
uma paisagem fácil, que degrada os espelhos.
Não apenas cheio de vivências íntegras
e com a palavra inútil em sua lógica.
Mas, oculto e denso,
na mutação que sou de mim mesmo.
O muro
O naufrágio do muro é o vermos como tal. O muro, antes que se o edifique (e o muro há de ficar sem muro) já o é. O relevo do muro é ignorar-se, e seu desastre é estar com o ar que lhe degrada o puro. O puro puro. O vocábulo corrompe o muro. O muro que ficou no mundo exigindo uma flauta.
Árvore
A árvore paradoxal
na sala
chora fogo e neve
Ventos de terras esquecidas
não a sopram
porque
em dezembro
as janelas não se abrem para
o abismo
A árvore paradoxal
só constringe
o menino sem estátua
sem rio
sem fruto
Mas extasia o mundo.
Sábado de cinzas
Estas paredes,
amadurecidas em sua dura inércia,
assistem ao escurecer do século
e o seu desespero cresce
no prenúncio amargo dos relógios.
Sábado de cinzas:
os homens querendo pisar em Deus.
Perspectiva de um exercício
Eis o de quanto, agora, preciso,
para meu encanto:
abrir a palavra
até descobrir-lhe
o núcleo fundamental
e, depois,
semeá-la numa terra sem memória
de que flores verbais
se abrirão, um dia,
a desprender
o olor
de uma estranha primavera.
Abrir a palavra
que ficou longe,
em seu misterioso concreto
e desvendar,
no imo tônico do verbo,
a verdade agônica
de um desejo
que seja, sobretudo, eterno.
Abrir a palavra
que eu não tenho agora
e de que a alma se nutre
para o ânimo da fantasia.
Abrir, enfim, a palavra
de que nasce
o fruto humano de cada dia,
para o fenômeno
só
da poesia.
Do pássaro em que voo
O meu pássaro de prata
se deslumbra, com a intacta
existência do seu fim.
Não finge o voo. Só o intenta,
quando a esfinge, que o sustenta,
se abre em volta de mim.
O meu pássaro de prata
da essência não se aparta
que o move em minha mão.
No entanto, fosse possível,
para torná-lo sensível,
dar-lhe o canto. O voo, não.
Lado inútil
se deslumbra, com a intacta
existência do seu fim.
Não finge o voo. Só o intenta,
quando a esfinge, que o sustenta,
se abre em volta de mim.
O meu pássaro de prata
da essência não se aparta
que o move em minha mão.
No entanto, fosse possível,
para torná-lo sensível,
dar-lhe o canto. O voo, não.
Lado inútil
Tua infância é muita,
para o que envelhece,
dentro do absurdo
que me torce e tece.
Tua infância é pouca,
para o que me cabe.
(E que a vida seja
o que, em mim, não sabe).
Ensaio sobre a porta
Perto da porta está o abismo.
A porta – exausta do caos que a fecha – dá-se em desespero
e seu imaturo silêncio cresce nas muralhas.
A porta, sem a ruína que a espera e a espreita, é o flagelo de
quem a abre.
A porta é o começo real de tudo quanto fica, pois sua viagem
válida é inventar caminhos para o Homem.
Se amadureço no verbo, (onde aporto) descubro, na porta, mais
do que uma porta: um porto. Porto donde parto para o acontecimento,
aquele em que sou a volta de um longo desperdício.
A porta, fora da lógica e do que a torna plena e plana, é a origem
da solidão que a move, fechando-a.
A porta existindo indefinidamente está e razão é que a observemos.
A bailarina
Enquanto ela dança, (e a ideia do sexo lhe baila na mente) sua
imaginação a coloca num plano respeitavelmente indecifrável.
Não há, em si, o caminho, senão a volta, e seus vestígios são a
continuação de uma fuga.
A bailarina se alça fora do equívoco e encanta-nos, perdendo-se
na circunferência que a prende.
Banquete
Eis o pão
de que necessitas,
para o alimento
do dia eterno:
a fome de invadir
o mistério global.
*Raymundo Nonato da Silva (DÉO SILVA), poeta e jornalista brasileiro, nascido em Caxias-MA, em 15 de agosto de 1937. Descendente de tradicional família maranhense, é filho de Jefferson Antonio da Silva e Aracy Carneiro da Silva. Sobrinho do casal Alderico e Dinir Silva. Entre títulos inéditos, publicações em vários suportes literários, é o autor dos livros de poemas “Ângulo noturno” (1959) e “Equação do verbo” (1980). Este 27 de setembro de 2017 marca 34 anos de seu falecimento físico.
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Fonte:
Seleção/organização dos textos realizada pelo professor, pesquisador da obra de Déo, Carvalho Junior
Imagens:
Foto cedida ao professor Carvalho Junior pelo filho mais novo de Déo Silva, Welter Cantanhêde, modificada com recursos de computador.
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