domingo, 22 de abril de 2018

Morro do Alecrim (Antônio Gonçalves Dias)





Morro do Alecrim
Antônio Gonçalves Dias

I.

Caxias, como és bela! – no deserto,
Entre montanhas, derramada em vale
De flores perenais,
És qual tênue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
À flor de manso lago.

Tu és a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cedros,
Forte – em gleba inculta;
És qual gazela que o deserto educa
No ardor da sesta debruçada exangue
À margem da corrente.

Não tens em mole seda oculto as graças,
Não cinges d’oiro a fronte que descansas
Na base da montanha;
És bela como a virgem das florestas,
Que vê nas águas desenhar-se as formas,
Firmada em tronco anoso.

Que monte além se eleva negrejante!
Na areia a base enterra, e o dorso ingente
De rija pedra mosqueado amostra;
Estéril como ele é, dizer parece
Que a ira do Senhor ardendo em raios
A seve d’hartos troncos – de mil anos
Apagou – consumiu – num breve instante.

Mas não; a rubra cor que aí se enxerga
É sangue que correu;
Cada pedra que i jaz encerra a história
D’um bravo que morreu.

E raios mil de guerra em morte envoltos
Já lá do cimo agreste da montanha
Sibilando e gemendo à funda base
Baixaram sussurrando.

É do povo o Sinai, que o nobre sangue
Independente e forte – em lide acesa
Na arena derramou;
E o filho inda lá vai cheio de orgulho,
Do pai beijando o sangue em largos traços
Que a pedra conservou.

II.

E quando alva lua no céu vai brilhando
O disco formoso luzente mostrando,
Então quando as ondas mais vívidas crescem
E mais contra a praia a bramir se enfurecem;

Descendo das nuvens ao monte orgulhoso
Infausta se amostra sinistra figura,
Mais negra que as trevas, que fora pasmoso
Ser esse fantasma de humana natura.

E quando é que se vê? – Quando nos bosques
A flor mais puro seu perfume exala,
Quando nas folhas o sussurro morre,
Quando das aves o gorjeio para.

Quando imundo tatu na concha envolto
Vai de manso volver minada campa,
E a coruja sedenta a luz dos mortos
No fronteiro pano da muralha estampa.

Desde quando aparece? – Ninguém sabe,
E talvez apareça sem ter fim;
Só um em cujo peito horror não coube
Já do fantasma a voz ouviu assim.

Manitô – Manitô – cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!

Manitô – Manitô – descobre o teu rosto,
Bastante nos pesa da tua vingança;
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande mudança.

O triste Anhangá de mui longe nos trouxe
Filhos de Tupã, essa raça danada,
Em vão deu-lhe of’rendas o Piaga divino
Tocando a maraca na dança sagrada.

Em vão neste monte lhe veio ofertar
A pel’maculada de tigre raivoso,
E frutos, e frutas – e a pel’cambiante
Da Boa vistosa de corpo pasmoso.

Manitô – Manitô – cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.

Teus filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco tupi.

E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer – abaixar…
Já restam bem poucos dos teus qu’inda possam
Dos seus, que já dormem, os ossos levar.

Teus filhos valentes causavam terror[.]
Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras
De frechas cobrindo os espaços do ar.

Já hoje não caçam nas matas tão suas
A corça ligeira – o trombudo coati.
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça – no arco tupi.

O Piaga nos disse que breve seria,
Manitô, dos teus a cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, por vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!


Manitô – Manitô – descobre o teu rosto,
Bastante nos pesa da tua vingança;
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.

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Segundo o escritor Edmilson Sanches, o poema “O Morro do Alecrim”, apareceu apenas na edição de 1846 dos "Primeiros Cantos" gonçalvinos, na parte das "Poesias Americanas", sendo, nas edições seguintes, em parte suprimido, em parte desdobrado em dois outros poemas bastante lembrados: “Caxias” e “Deprecação”.

Referência: Camilo, Vagner. Revoltas provinciais: testemunhos poéticos.  Consulta feita no site file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/123337-242842-1-PB%20(2).pdf