terça-feira, 16 de dezembro de 2014

AUTOBIOGRAFIA DE CRIANÇA - Escritor caxiense EDMILSON SANCHES



Sou de Caxias. Caxias é a fundação, a base, o baldrame, enfim, tudo o que dá sustentação ao erguimento da edificação de mim.

Tenho orgulho e, mais que isso, tenho prazer da infância riquíssima que tive. Não me lembro bem das coisas que fiz este ano, o ano passado, há cinco, dez, vinte anos... mas como estão vivos e vívidos os ontens da minha meninice!

As ruas onde morei: rua da Palmeirinha, rua da Galiana, rua Bom Pastor, rua Antônio Pereira Neto (antiga Nova Rua), rua Benedito Leite (antiga rua do Cisco), rua Afonso Pena... As escolas onde estudei: o Coelho Neto (do médico, falecido, Marcello Thadeu de Assumpção -- essa mesma a grafia), o Gonçalves Dias, o Duque de Caxias (Bandeirantes), o São José (das irmãs missionárias capuchinhas)...

Menino pobre de infância rica: bom nadador, atravessava de um só fôlego o rio Itapecuru (que nem de longe se parece com os restos mortais líquidos e incertos de hoje). Décadas depois, em Fortaleza, estava fazendo mergulho no mar, em profundidade de 40 metros, como mergulhador submarino (mergulho autônomo).

Ainda em criança, costumava ser levado pelos parentes e amigos para pescar, pois era o único com coragem para, no meio ou nas margens do rio, descer da canoa, acompanhar a linha da vara de pescar e ir recuperar o anzol que corria o risco de se perder -- ou porque fisgara o muçum que teimava em não sair da loca, ou porque, teimando em não se render, o peixe enroscara a linha em vegetações, troncos e galhos no fundo do rio. Era uma festa cada anzol recuperado (devidamente acompanhado do habitante fluvial que o engolira).

Infância rica de menino pobre: nadar no Porto dos Homens; espiar, por entre o mato, as garotas no Porto das Mulheres. Pegar frutas na quinta do seu Antônio João. Acordar cedinho para catar no chão os caroços das sapucaias abertas na noite pelos morcegos.

Na quinta da Maria Poquinha e em outras quintas e cantos, muito antes de surgir os impedimentos legais (ainda bem que vieram!), caçar passarinhos, de baladeira (não se chamava estilingue), marcando no cabo a quantidade de bichinhos que se pegara. Preparar arapucas e outras armadilhas para bichos de pena e bichinhos do mato. Criar guriatã, canário, sabiá (inclusive sabiá-cagona), pipira, anum, vim-vim (não se chamava gaturamo). Ouvir o canto da rolinha fogo-apagou, do tiziu (passarinho que dava saltos mortais no ar e pousava seguro no galho).

Buscar pequi na chapada, onde também se colhiam frutinhas como coroa-de-frade, canapu, seriguela, cajá, umbu. Jogar futebol no Campinho, próximo à estação de ferro, e participar de briga, depois de jogar areia ou cuspir no rosto do garoto adversário ou desfazer com os pés uma risca no chão (“Aqui é a tua mãe e aqui é a mãe dele”).

Jogar pedras rente à água do rio para saber quantos filhos ia fazer. Banhar-se no rio até os olhos ficarem vermelhos e assoprá-los para voltarem a ficar “brancos”, senão a taca no lombo seria certa. Catar cobre, alumínio e outros metais para vender no quilo.

Nas quitandas do Nezinho, do seu Manoel e de outros Nezinhos e Manoeis, fazer compras de óleo em medida, querosene em litro para as lamparinas, quarta de arroz, meio litro de farinha... Bater em bico de lamparina para o murrão sair. Socar arroz no pilão e catar as escolhas no quibano.

Deitar na rede, enrolando-se todo de medo da “pesadeira” ou da grande porca que andava pelas ruas altas horas da noite. Ficar cheio de receios e temores ao ouvir a rasga-mortalha “grasnando” longe, pois, se cantasse sobre uma casa significaria que ali em breve morreria alguém.

Disputar campeonatos de futebol (sobretudo no clássico Galícia, da rua da Galiana, contra o Palmeiras, da rua da Palmeirinha). Fazer e vender gaiolas de buriti e papagaios de papel (sura era o papagaio sem “rabo” e a curica, com; não se chamavam de pipas). Quebrar lâmpadas e transformar o vidro em pó, para fazer cerol, e depois disputar nos céus quem cortava a linha de quem.

Jogar triângulo ou chucho, inclusive “de revestrés”. Jogar castanhas. Colecionar “dinheiro” que eram as embalagens de carteiras de cigarro -- Minister, Hollywood, Continental, Gaivota... No casa-ou-bila ou nos buracos, jogar peteca (não se chamava de bolinha de gude).

Subir nos arcos da ponte de cimento. Jogar a câmara de ar e depois jogar-se da ponte de ferro e ir boiando, rio Itapecuru abaixo, até o porto mais próximo de casa. Banhar-se no Ouro, no Ponte, na Maria do Rosário, no Iamun (Inhamum). Divertir-se na Veneza e suas piscinas e lagos de água mineral e trazer de lá latas de lama medicinal.

Brincar de pegador. Comer bolo na festa de Reis, ouvindo os tambores e a cantoria (“Ô meu Divino Espírito Santo!”). Criar carneirinhos que eram presentes de aniversário e ensiná-los a marrar, para desespero da mãe, que achava que o animalzinho poderia quebrar a cabeça do “treinador”.

Ver os potes “suando” na bilheira, sinal de água fria, bebida em copos de alumínio brilhando de ariado. Deliciar-se com os doces em vasilhames no petisqueiro, cristais na cristaleira. Sentar em peitoril e, à noite, levar para a calçada mochos, tamboretes e, o fino da bossa, cadeiras de macarrão, e ouvir estórias, “causos”; ouvir também a rádio Mearim de Caxias e o programa do Jairzinho na Rádio Sociedade da Bahia, onde também se ouvia a novela “Direito de Nascer”.

Ler “romances” (nome que se dava aos folhetos de literatura de cordel). Ceder ao vizinho, através da cerca feita de talos, xícaras de café em pó, açúcar, sal, arroz, óleo. Erguer canteiros e neles plantar coentro, alface e cebola em folha, para serem vendidos em molhos no Mercado Municipal (hoje a prefeitura).

Auxiliar na construção de casas de taipa e ajudar a cobri-las com folhas de palmeira (eram mesmo palmeiras?). Estudar na escolinha de dona Maria Luíza e ter que bater de palmatória nas mãos dos coleguinhas porque era o único a saber soletrar “helicóptero” e “exercício” (sabia até soletrar “Matias”: eme-a-má ti-gui-ti, corta o “t”, pinga o “i”, tira daqui, bota prali, esse-ás Matias...).

No São João, brincar brincadeiras de roda, espocar foguetes, jogar traques e bombinhas, dançar quadrilha, ter madrinha de fogueira e faca na bananeira...

Isso e muito mais, a riqueza que se deve acumular e que ninguém pode roubar. Mas ocorre o infanticídio, e daí surge o homem, lutando por poucas coisas e brigando por muitas causas.

Voltar a Caxias é voltar ao mais essencial de mim.
(2005)

EDMILSON SANCHES
edmilsonsanches@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário